Thursday, April 10, 2008

Filme de terror também faz chorar

Inúmeras vezes ouvi confissões românticas de pessoas que admitem chorar assistindo filmes. O fenômeno acomete mais as mulheres, mas não pense que essas lágrimas tímidas também não escorrem dos olhos de muitos marmanjos na frente da telona. Eu mesmo admito: já chorei vendo filme. Poucas vezes, mas já aconteceu. O caso mais marcante foi assistindo, pela primeira vez, A Vida de David Gale (2003), do diretor Alan Parker. Baseado em fatos reais, o longa-metragem conta a história do norte americano David Gale (Kevin Spacey), professor universitário e ativista contra a pena de morte que se encontra, curiosamente, no corredor da morte, acusado do assassinato de sua colega de trabalho e militância Constance (Laura Linney). Intrigada, a jornalista Bitsey Bloom (Kate Winslet) consegue algumas sessões para entrevistar o condenado, e, ao decorrer das conversas, começa a acreditar na inocência de Gale. O julgamento, porém, está próximo, e ela tem que correr contra o tempo para conseguir provas que absorvam o professor. Não vou contar o resto, é óbvio. Mas assistam, pois aposto que também irão chorar no final.

Apesar de ter me emocionado bastante com A Vida de David Gale, meu forte mesmo são os noticiários. Assistindo as desgraças do cotidiano, aí sim, eu choro como um moleque. Já havia acontecido com a forte imagem do bebê encontrado boiando em dentro de um saco plástico na Lagoa da Pampulha, em Belo Horizonte, abandonado pela mãe em 2007. E ontem aconteceu novamente. Mais uma vez, a crueldade de uma “mãe” foi quem me fez chorar. Repercutindo em todos os jornais, o caso da menina de 12 anos que era torturada pela mãe adotiva em Goiânia chocou todo o Brasil e me fez despejar lágrimas de indignação, quase ao mesmo tempo em que me provocava ânsia de vômito. Encontrada acorrentada com os dois braços suspensos no teto, a garota era vítima de um sadismo extremo e assustador, em que modos de tortura como quebrar as unhas e apertar a língua com alicates, obrigar a comer fezes de cachorro e colocar pimenta nos olhos eram bizarramente adotados. Até ontem, além da torturadora, mais cinco cúmplices foram indiciados e, talvez hoje, os filhos biológicos da mulher prestarão depoimento. O inquérito, segundo a delegada que apura o caso, está próximo do fim.

A empresária/monstro Sílvia Calabresi, de 42 anos, não deixou, porém, cair nenhuma lágrima. Todos choraram: a garota, o advogado que a salvou, seus pais biológicos, os filhos de Sílvia, os policiais, os jornalistas, eu e todo o Brasil. Mas Sílvia, psicopata protagonista de uma história digna de filme de terror, não se emocionou em momento algum. Abaixou a cabeça e disse, friamente, só responder as perguntas na presença de um juiz. Ela não parece ser do tipo que chora assistindo filmes. Mas talvez devesse alugar A Vida de David Gale, para, quem sabe, se emocionar um pouco e amolecer esse coração repleto de maldade e tristeza. Filmes de amor, dramas e comédias românticas também são bem-vindos. Quem sabe na cadeia não a deixam assistir? Tomara que não. Afinal, vale lembrar que filmes de terror não têm final feliz.

A culpa é de quem?

Incorporada, hoje, ao cotidiano dos belo-horizontinos, a discussão sobre a rápida evolução dos problemas no trânsito da capital é pauta que rende debates calorosos, das redações de jornais às mesas de bar. Relatos sobre acidentes e congestionamentos, proposições hipotéticas de melhorias, queixas mil em relação à administração municipal e aos agentes de trânsito são, entre outros, capítulos recorrentes quando o trânsito é o assunto. O curioso, porém, é que as discussões são rasas e, muitas vezes, hipócritas no tocante ao principal “carrasco” do trânsito de BH: a falta de educação.

Com uma assustadora frota de 1,7 milhão de veículos, para cerca de 2,4 milhões de habitantes, a cidade vive, com os reflexos do bom momento da indústria automobilística (aproximadamente 500 veículos emplacados por dia, segundo o DETRAN), um cenário urbano tenso em que a imprudência aparece como causa de 80% dos acidentes ocorridos em 2007.

Infrações facilmente flagradas, como dirigir em velocidade acima da permitida, estacionar em desacordo com a sinalização, dirigir falando ao celular, fechar cruzamento e avançar semáforo temperam o gosto amargo da falta de educação e da imprudência no trânsito de Belo Horizonte. E é nesse ponto em que a discussão torna-se extremamente hipócrita. A culpa individual é escondida embaixo do tapete enquanto os supostos culpados são apontados e as supostas soluções cobradas. Mas quem seriam os culpados?

É público e notório que existem falhas na administração municipal e que o gerenciamento da BHTrans ainda tem muito a caminhar. Mas é demasiado cômodo apontar essas falhas como causa única dos problemas no trânsito, sem antes refletir na parcela de culpa que cada um assume ao agir de forma imprudente e desrespeitosa. É interessante, pois, que cada ator do trânsito joga a culpa para o outro: o motociclista é folgado, o motorista é folgado, o taxista é folgado, o pedestre é folgado e por aí vai. Mas, ao falar de como se comportam no trânsito, a vergonha aflora e é complicado responder “eu sou folgado também”.

Dados que alarmam o problema, como o que mostra que 45% dos acidentes são frutos do avanço de semáforo – atitude clássica de imprudência no trânsito – apontam um preocupante quadro de desrespeito ao próximo e falta de senso de coletividade e cidadania.

Falta, portanto, a cada um que participa do trânsito e, principalmente, aos formadores da opinião pública, percepção e abordagens mais aprofundadas da situação. O trânsito é um problema de todos, e é sob esse conceito que cada cidadão deve orientar seu comportamento no dia-a-dia.

Não se deve apenas esperar do poder público uma resolução imediata, enquanto, no cotidiano, as atitudes pessoais tendem a piorar cada vez mais uma realidade já bem preocupante. A educação e o respeito são primordiais para o exercício da cidadania, e devem acompanhar cada um em todos os setores da sociedade: seja em casa, no trabalho, no lazer ou no trânsito.

Monday, September 03, 2007

Obrigado, Judy

Acordei devagar, com preguiça de levantar da cama. Os olhos inchados e a cabeça doendo um pouco, como costuma acontecer em uma manhã de domingo, depois de um fim de semana pesado. Domingo é difícil. Você lembra que ainda é fim de semana quase ao mesmo tempo em que lembra da segunda-feira. O café me ajuda nessas horas. Minha vontade de bebê-lo me faz encarar melhor o dia.

Levanto e confiro no espelho se essa feiúra toda ainda me pertence. OK. Dou uma mijada antes de ir para a sala. Vovô e vovó já estão tomando o café da manhã. Troco “bons dias”, com um beijo na testa da vovó. Seu José mal me responde. Não conversa muito comigo. Somos muito parecidos, o estopim dos dois é muito curto, o que já provocou desavenças alguns anos atrás. Não que isso faça com que sejamos inimigos, apenas não interagimos bem. Pego minha xícara. Meu avô lê o jornal, com uma cara de poucos amigos. O velho é turrão, descendente de siciliano, daqueles, estilo Poderoso Chefão. Sensíveis e rancorosos. Mas alegres e dedicados à família em primeiro lugar. Além disso, sofrera muito, em tempos não tão distantes, quando a pátria amada ardia à dor da ditadura militar.

Vovô foi preso em um protesto e torturado por algum tempo. Exilou-se no Chile, alguns anos depois. Era membro ativo do sindicato dos bancários e participou de movimentos estudantis. Ele não lê mais notícia do Lula. Vê o Presidente e vira a página do jornal. Muda de caderno. Ajeita os óculos e volta a ler. Minha avó tira um bocado de pães de queijo do forno. Tomar café com eles sempre me fez muito bem. Adoro a comida e a companhia da minha avó. Adoro conversar com ela. É culta e sagaz, detentora de uma língua ferina, professora de literatura e paisagista. Cozinheira de mão cheia, nas horas vagas. Hoje ela está mais calada, séria.
– Que cara é essa, vó? – eu pergunto.
– Cara de quem dormiu muito mal e que é casada com esse sujeito chato que é o seu avô. – vovó responde, encarando o velho.
– Ah, Ruth, ó. Vá à merda! Só sabe encher o saco, sô! – Seu José xinga, sem tirar os olhos do jornal.
Chato e grosso. – vovó completa.

Peço a ela que me passe a manteiga, interrompendo a briga dos dois. Ela fica emburrada e vai para a cozinha. Vovô comenta: – Olha, que velha ridícula!
– Como é que é, José? – vovó grita.
– Não tô falando de você, é outra velha! – ele irrita.
– Vá à merda!

Pergunto sobre quem ele estava falando, freando outra vez a gritaria. Ele me passa a página do jornal. Leio sobre a tal velha ridícula. Vovô falava de Judy Robbe, uma senhora inglesa que mora em Belo Horizonte há 40 anos e inventou, no Brasil, uma idéia que começa a ser copiada na Europa e nos Estados Unidos. Ela criou o living will (algo como "testamento de vida"), um testamento que expressa como quer envelhecer caso venha a perder a lucidez. O tutor da família, indicado por ela, e dois médicos assinam o documento que contém desejos simples, mas essenciais, como ser bem tratada e receber visitas dos familiares. Confesso ao vovô que achei a idéia interessante, e pergunto o motivo pelo qual ele achou ridículo.
– Ninguém respeita a gente quando tá lúcido, vão respeitar de outro jeito? – ele diz – Além do mais ela fez isso pra família, e família não precisa saber como você quer ser tratado. Quem se ama, e se conhece bem, sabe as necessidades do parente e vai ajudar da melhor forma possível.

Digo ao vovô que concordo em partes, que nem em toda família as pessoas são como nós. Ele responde que sabe disso, e por isso acha a velha ridícula. Minha avó grita, lá da sala, que ele é chato demais. Ele resmunga. Grita que ele quer é dar trabalho mesmo, e vovó responde que, se depender dela, ele é quem vai se dar mal. Pergunto, de curiosidade, o que ele escreveria no testamento. Ele me mandar ir à merda. Diz que já sofreu com gente louca no poder e que para ele, um velho aposentado, endoidecer um pouco não ia fazer tão mal. O comentário me faz rir, e ele retribui o sorriso. Puxo papo sobre a ditadura. Pergunto sobre outra notícia, de alguns meses atrás, que contava as barbáries escritas no “Livro Negro do Terrorismo no Brasil”, versão secreta dos militares sobre os anos de chumbo, finalmente descoberta e levada à tona. Acaba que, como em um passe de mágica, estamos conversando novamente.

Ele adora falar de como protestou e fazer comparações entre as nossas gerações. Concordo plenamente com ele, e engulo a seco os comentários depreciativos sobre “os jovens de hoje”. Vovô diz que eles tinham bandeira e passavam por muitas dificuldades, e que hoje temos tudo nas mãos e não lutamos por causa alguma. Concordo. O tempo passa e o papo voa. Muda para futebol, religião e depois até para mulheres. Fico mais emocionado, a cada minuto que passa, de estar conversando com ele. Não lembrava a importância que isso tinha em minha vida. Dou bandeira. Vovô percebe e olha para mim, com os olhos cheios dágua. Como disse, se parece muito comigo. Levanto e abraço o velho, dizendo que aquele dia era muito importante para mim.
– Não vamos perder mais isso, vô. – pontuo.
– Nunca, de jeito nenhum. Afinal, qualquer dia posso perder a lucidez e vocês não terão o roteiro da inglesa lá, por isso é bom conversar muito comigo! – ele brinca, feliz.

Digo a ele que temos que agradecer à dona Judy Hobbe, que graças a ela voltamos a conversar. Ele concorda, um pouco contrariado, lembrando-me que ainda acha a velha ridídcula. Minha avó passa pela sala, satisfeita e emocionada. Ótimo fim de semana. A segunda vai ficar até mais fácil de encarar. Vovó v para a cozinha, para fazer o sagrado almoço de domingo. Seu José ri para mim e completa:
– Tá aí, vou colocar isso no meu living will. Que me garantam poder ter uma conversa assim, com o meu neto, sempre.

Obrigado, Judy.

Thursday, August 23, 2007

Assalto em BH

Fim de expediente. Hora de pegar o ônibus, chegar em casa, comer alguma coisa e capotar na cama. Enquanto espero no ponto, acendo um cigarro e reflito sobre o que jantar. Lasanha de microondas ou omelete? Macarrão ou sanduíche? Refrigerante ou suco? Cerveja de sobremesa ou não? É bom ter um tempo para não pensar só em problemas complicados de serem resolvidos.

O monstro azul chega, transbordando proletariados cansados como eu. Quando o coletivo freia, soltando aquele ganido irritante, a moçada se alvoroça, lutando para tentar adivinhar onde ele vai estacionar, pra subir rápido e garantir um lugar mais vazio. Perco; ele pára lá na frente. Misturo-me ao bando e entro. Hoje vai demorar, ta lotado.

Uma menina bonita (que me parece familiar) oferece para segurar a mochila. Adoro quando isso acontece. Aceito e agradeço. Volto a viajar na comida. Estou entre a lasanha e o macarrão. Vai ser suco, já decidi. E a cerveja também vai rolar: tem jogo do Galo mais tarde, estava esquecendo. Cacete, hoje vai demorar mesmo, tudo congestionado. Li no jornal que as concessionárias estão de vento em popa com as vendas de carros, que não param de aumentar. Dá pra perceber. Mas ainda tem um contingente considerável de gente sem carro, eu acho. Pelo volume nos ônibus também dá pra perceber. Aí, é só jogar tudo isso nas ruas e avenidas – pequenas e sem estrutura –, somar a educação e a calma dos motoristas mineiros, e pronto! A receita perfeita para um trânsito agradabilíssimo.

Melhor pensar no rango ou olhar para a menina. Faz o tempo passar mais rápido. Tenho certeza que já vi essa porra dessa menina antes. Acho que ela também já percebeu que me conhece, mas também não lembra de onde, ou está com vergonha de conversar. Odeio quando isso acontece – ficar tentando lembrar de alguma coisa aparentemente fácil de lembrar. As lembranças ficam batendo na trave, mas não entram. Nome de filme, então, é chato demais de esquecer. Lasanha, decidido.

Beleza, na Praça Sete desce muita gente. Só agora vai dar para pagar a passagem e passar lá para trás. Sentar ainda nem pensar. Minha mochila. Obrigado, menina-que-eu-conheço-de-algum-lugar. O trocador parece o Tião Macalé, e escuta um forró de arder os ouvidos, felizão. Vai entender. Admiro gente assim. Eu, que já estou indo embora para casa, com essa cara de bunda, e o cara, no meio do expediente, exibindo esse sorriso constante, com os dentes maltratados.

Cochilo em pé. Cena feia pra burro, ainda mais com o ônibus cheio. Tinha um muleque rindo quando os olhos abriram. Ele ficou sem graça, aí quem riu fui eu. Se fosse eu, criança, também ia rir e ainda ia apontar. Minha mãe ficava puta quando eu fazia isso. Opa, a mãe do muleque deu sinal, vou sentar. Agora dá até para cochilar um pouco, sentado, “em paz”. O ritmo com que a cabeça bate, levemente, no vidro do ônibus me adormece. Acordo, de sobressalto, assustado. Quase passo do ponto. Dou sinal e desço.

Hora de suar um pouco, subindo a rua que lembra uma parede de escalada. Dizem que lá em Brasília é tudo plano, nada de subida. Maravilha de lugar. Um camarada com a camisa do Galo vem subindo também, mais no pique que eu. Ele também estava no ônibus, coitado. Ele vai me ultrapassar, está vindo bem mais rápido. Mas, de repente, muda o ritmo.

Ele freia, fica lento como eu, e logo atrás de mim. E anuncia o assalto, falando baixo, pedindo só o celular. Encosto no portão de uma casa. Já até acostumei; é só não reagir, ficar tranqüilo, trocar idéia. Mas vai ficar complicado pagar duas prestações por mês de dois celulares que doei forçadamente a ladrões. Resolvo argumentar. Ao olhar para o cara, porém, tenho a mesma sensação que tive com a menina. A diferença, óbvio, é que nele não tem nada de bonito. Tem a cabeça grande, sobrancelha grossa e cavanhaque, o rosto todo furado pelas marcas de acnes, quase tão feio quanto o Tião Macalé trocador. Ele também percebeu que me conhece, e abaixou a cabeça. Cabeça, cabeça... Cabeção!
– Peraí, você é o Cabeção, que olha carro ali na rua do Breno! – desarmo-o.
– Puta merda, sabia que te conhecia de algum lugar...

A testa franzida e a cara de bandido dão lugar a um rosto ruborizado e arrependido consigo mesmo pela falta de atenção. Ele conhece o Breno há anos, e a família toda dele, não tem nem como continuar: assalto frustrado. Num misto entre raiva e pena, questiono: – Quê isso, cara! Roubando?
– Ta difícil demais, “zé”. A grana ta cada vez mais curta e em casa o bicho ta pegando. Foi mal mesmo, se tivesse lembrado que era amigo do Breno... Como cê chama mesmo? – ele tenta amenizar.

Lúcio, eu respondo. – Tem nada a ver não. Ta ruim pra todo mundo. E o Brenão, tem visto muito?
– Uai, quase todo dia! – ele se anima.
- Fala que eu mandei um abraço.

Ele volta a ruborizar, e nega o pedido, dizendo que não teria coragem de contar o caso ao Breno. Digo que não precisa, para falar que me viu na rua, no Centro. É o nosso segredo.
Ele agradece, constrangido.
– Hoje vai dar Galo, não vai? – agora sou eu quem quebra o gelo.
– Nem me fala! Tomara, né, com esse time do Atlético...
– Ah, mas acho que hoje vai, não é possível! O outro time é ruim demais...

Assim, passamos mais alguns minutos conversando sobre futebol, até que vejo minha vizinha subindo a rua e o assunto muda. Cabeção é peça-rara, tem um jeito de falar engraçado. Mas meu estômago ronca, e me lembro da lasanha. Despeço-me do camarada, só mais um pobre-diabo. Feio, pobre e atleticano. Como eu, como nós. Ele volta às desculpas, com os olhos cheios d’água. Dispenso-as, sorrindo, e lembro-o de falar com o Breno.
– Pode deixar! Não vou esquecer! – ele assegura.
– Beleza, qualquer dia apareço lá na rua. Até!

Chega de papo fiado. A fome está negra e uma bela lasanha me aguarda no freezer. E ainda tem cerveja e jogo do Galo depois. Ai, ai, só em Belo Horizonte mesmo. Só nesse ovo de cidade, onde todo mundo parece estar conectado por um amigo / conhecido / primo / colega de trabalho. Até em situações escabrosas como essa. Pelo jeito, não são apenas as nossas ruas que não se parecem com as de Brasília – nossos ladrões também são bem diferentes.

Wednesday, February 14, 2007

Por um triz

Dias estranhos são aqueles em que vemos o quanto estamos expostos à morte. De repente, ela vem. Ou passa ao lado, zombando, mandando a mensagem "essa foi quase, malandro!". Você está dirigindo rápido, se distrai por alguns segundos, e, do nada, aparece um muro na sua frente. Seu carro tem uma semana de uso. Se não acabasse em tragédia, dor de cabeça ia render. Mas você golpeia o volante para o lado, com uma destreza inexplicável. E está vivo. Por um triz. E tudo parece diferente, parece mais...vivo. Você vê que a vida pode não valer de nada, mas vale de tudo. Pelo menos naquele momento. O coração está pulando, as pernas bambas e as mãos suadas, tremendo. Você percebe que chegar ao fim é muito fácil, seja lá o que for o fim. Percebe que é realmente tênue, a linha que separa a vida, da morte. Olha para o lado e seu amigo parece ter tido um colapso, suando frio, com a boca seca. De medo. Sim, são dias em que você se borra de medo. Dias diferentes.

Thursday, February 08, 2007

Nocaute

Dói muito. Ao menos consegui chegar até aqui, onde posso me sentar. E sentado, espero. Estou na rodoviária. Pessoas dos mais diferentes tipos correm, conversam, gargalham, xingam e gritam. A maioria delas têm pressa. Estão indo viajar. Indo trabalhar. Atrasadas. Irritadas. Ou angustiadas, esperando por ônibus que demoram. Um zoológico diverso - de uma só espécime. E eu transpiro. E sofro. A voz diz: "Senhores passageiros, favor tomarem conta de suas próprias bagagens". E meu estômago dói. Mas não como antes. Hoje ele me nocauteou de vez. Assim, apesar da multidão, só a dor é quem me faz companhia. E com ela, espero. Espero meu médico, que vem correndo. Ele já saiu lá de casa, está a caminho. Vem, como sempre, para me socorrer. Santo de casa faz milagre sim. Tomara, pois sentado, espero. Espero a dor passar. Mas sei que, talvez, ela me acompanhe até meus últimos dias.

Tuesday, February 06, 2007

Na chuva

Olhe, os idiotas correm da chuva
entre as muitas – e irritantes –
de verão
alguns com seus guarda-chuvas,
outros não
Os espertos, estes não correm.
têm carros
ou paciência o bastante para esperarem
nas marquises
Idiota que sou,
corro
corro até encontrar
algum lugar
onde, por cinco paus,
eu possa comprar um guarda-chuva.

Thursday, June 09, 2005

O dia

Entrou no ônibus. Um desespero o tomou por alguns segundos. Sempre odiou multidões, depreciava a raça humana no geral. Pensou em gritar, mas conteve-se. Além da aflição que o consumia, em pé devia seguir sua viagem após o fatigante dia de trabalho. Estava calor e um homem alto o espremia. O pior pode piorar. Uma graciosa senhora sentada à sua frente oferece para segurar sua pesada mochila. Ele recusa e agradece. E transpira. Nunca suportou gente educada. O vida não fora educada com ele. Fora cruel. Mas isso não cabia a ninguém julgar ou não. Muito menos tinha importância naquele momento. O que desejava era sair o mais rápido possível dali. Mas ainda não era o suficiente. Um bebê dava início à sinfonia da fúria . O pranto infantil, o choro do recém-nascido. A infalível receita da antipatia. Estava em tempo de endoidecer. Mas ainda havia esperança. A senhorita dá sinal e desce. Ele senta, e por alguns instantes, rápidos, se alivia. Tira um livro de sua mochila, literatura espanhola. Horrível. Era só para passar o tempo. Mas não havia misericórdia. E um baque surdo anuncia a batida do ônibus . Nenhum ferido, nenhuma complicação. Parecia que aquilo só havia acontecido para irritá-lo, atrapalhando sua leitura. E então todos descem tensos e irritados, menos ele. A batida tinha apenas acendido suas esperanças de percorrer sozinho e tranqüilo o resto do seu trajeto. E assim aconteceu. Mais uns dez minutos de caminhada e chegou ao seu lar (se é que se podia chamar aquilo de lar). E então o medo apoderou-se de seu corpo com a aproximação de Sinval, seu vizinho. O gordo e velho Sinval. E o temível e provável aconteceu... "Boa noite vizinho!"