Monday, September 03, 2007

Obrigado, Judy

Acordei devagar, com preguiça de levantar da cama. Os olhos inchados e a cabeça doendo um pouco, como costuma acontecer em uma manhã de domingo, depois de um fim de semana pesado. Domingo é difícil. Você lembra que ainda é fim de semana quase ao mesmo tempo em que lembra da segunda-feira. O café me ajuda nessas horas. Minha vontade de bebê-lo me faz encarar melhor o dia.

Levanto e confiro no espelho se essa feiúra toda ainda me pertence. OK. Dou uma mijada antes de ir para a sala. Vovô e vovó já estão tomando o café da manhã. Troco “bons dias”, com um beijo na testa da vovó. Seu José mal me responde. Não conversa muito comigo. Somos muito parecidos, o estopim dos dois é muito curto, o que já provocou desavenças alguns anos atrás. Não que isso faça com que sejamos inimigos, apenas não interagimos bem. Pego minha xícara. Meu avô lê o jornal, com uma cara de poucos amigos. O velho é turrão, descendente de siciliano, daqueles, estilo Poderoso Chefão. Sensíveis e rancorosos. Mas alegres e dedicados à família em primeiro lugar. Além disso, sofrera muito, em tempos não tão distantes, quando a pátria amada ardia à dor da ditadura militar.

Vovô foi preso em um protesto e torturado por algum tempo. Exilou-se no Chile, alguns anos depois. Era membro ativo do sindicato dos bancários e participou de movimentos estudantis. Ele não lê mais notícia do Lula. Vê o Presidente e vira a página do jornal. Muda de caderno. Ajeita os óculos e volta a ler. Minha avó tira um bocado de pães de queijo do forno. Tomar café com eles sempre me fez muito bem. Adoro a comida e a companhia da minha avó. Adoro conversar com ela. É culta e sagaz, detentora de uma língua ferina, professora de literatura e paisagista. Cozinheira de mão cheia, nas horas vagas. Hoje ela está mais calada, séria.
– Que cara é essa, vó? – eu pergunto.
– Cara de quem dormiu muito mal e que é casada com esse sujeito chato que é o seu avô. – vovó responde, encarando o velho.
– Ah, Ruth, ó. Vá à merda! Só sabe encher o saco, sô! – Seu José xinga, sem tirar os olhos do jornal.
Chato e grosso. – vovó completa.

Peço a ela que me passe a manteiga, interrompendo a briga dos dois. Ela fica emburrada e vai para a cozinha. Vovô comenta: – Olha, que velha ridícula!
– Como é que é, José? – vovó grita.
– Não tô falando de você, é outra velha! – ele irrita.
– Vá à merda!

Pergunto sobre quem ele estava falando, freando outra vez a gritaria. Ele me passa a página do jornal. Leio sobre a tal velha ridícula. Vovô falava de Judy Robbe, uma senhora inglesa que mora em Belo Horizonte há 40 anos e inventou, no Brasil, uma idéia que começa a ser copiada na Europa e nos Estados Unidos. Ela criou o living will (algo como "testamento de vida"), um testamento que expressa como quer envelhecer caso venha a perder a lucidez. O tutor da família, indicado por ela, e dois médicos assinam o documento que contém desejos simples, mas essenciais, como ser bem tratada e receber visitas dos familiares. Confesso ao vovô que achei a idéia interessante, e pergunto o motivo pelo qual ele achou ridículo.
– Ninguém respeita a gente quando tá lúcido, vão respeitar de outro jeito? – ele diz – Além do mais ela fez isso pra família, e família não precisa saber como você quer ser tratado. Quem se ama, e se conhece bem, sabe as necessidades do parente e vai ajudar da melhor forma possível.

Digo ao vovô que concordo em partes, que nem em toda família as pessoas são como nós. Ele responde que sabe disso, e por isso acha a velha ridícula. Minha avó grita, lá da sala, que ele é chato demais. Ele resmunga. Grita que ele quer é dar trabalho mesmo, e vovó responde que, se depender dela, ele é quem vai se dar mal. Pergunto, de curiosidade, o que ele escreveria no testamento. Ele me mandar ir à merda. Diz que já sofreu com gente louca no poder e que para ele, um velho aposentado, endoidecer um pouco não ia fazer tão mal. O comentário me faz rir, e ele retribui o sorriso. Puxo papo sobre a ditadura. Pergunto sobre outra notícia, de alguns meses atrás, que contava as barbáries escritas no “Livro Negro do Terrorismo no Brasil”, versão secreta dos militares sobre os anos de chumbo, finalmente descoberta e levada à tona. Acaba que, como em um passe de mágica, estamos conversando novamente.

Ele adora falar de como protestou e fazer comparações entre as nossas gerações. Concordo plenamente com ele, e engulo a seco os comentários depreciativos sobre “os jovens de hoje”. Vovô diz que eles tinham bandeira e passavam por muitas dificuldades, e que hoje temos tudo nas mãos e não lutamos por causa alguma. Concordo. O tempo passa e o papo voa. Muda para futebol, religião e depois até para mulheres. Fico mais emocionado, a cada minuto que passa, de estar conversando com ele. Não lembrava a importância que isso tinha em minha vida. Dou bandeira. Vovô percebe e olha para mim, com os olhos cheios dágua. Como disse, se parece muito comigo. Levanto e abraço o velho, dizendo que aquele dia era muito importante para mim.
– Não vamos perder mais isso, vô. – pontuo.
– Nunca, de jeito nenhum. Afinal, qualquer dia posso perder a lucidez e vocês não terão o roteiro da inglesa lá, por isso é bom conversar muito comigo! – ele brinca, feliz.

Digo a ele que temos que agradecer à dona Judy Hobbe, que graças a ela voltamos a conversar. Ele concorda, um pouco contrariado, lembrando-me que ainda acha a velha ridídcula. Minha avó passa pela sala, satisfeita e emocionada. Ótimo fim de semana. A segunda vai ficar até mais fácil de encarar. Vovó v para a cozinha, para fazer o sagrado almoço de domingo. Seu José ri para mim e completa:
– Tá aí, vou colocar isso no meu living will. Que me garantam poder ter uma conversa assim, com o meu neto, sempre.

Obrigado, Judy.