Fim de expediente. Hora de pegar o ônibus, chegar em casa, comer alguma coisa e capotar na cama. Enquanto espero no ponto, acendo um cigarro e reflito sobre o que jantar. Lasanha de microondas ou omelete? Macarrão ou sanduíche? Refrigerante ou suco? Cerveja de sobremesa ou não? É bom ter um tempo para não pensar só em problemas complicados de serem resolvidos.
O monstro azul chega, transbordando proletariados cansados como eu. Quando o coletivo freia, soltando aquele ganido irritante, a moçada se alvoroça, lutando para tentar adivinhar onde ele vai estacionar, pra subir rápido e garantir um lugar mais vazio. Perco; ele pára lá na frente. Misturo-me ao bando e entro. Hoje vai demorar, ta lotado.
Uma menina bonita (que me parece familiar) oferece para segurar a mochila. Adoro quando isso acontece. Aceito e agradeço. Volto a viajar na comida. Estou entre a lasanha e o macarrão. Vai ser suco, já decidi. E a cerveja também vai rolar: tem jogo do Galo mais tarde, estava esquecendo. Cacete, hoje vai demorar mesmo, tudo congestionado. Li no jornal que as concessionárias estão de vento em popa com as vendas de carros, que não param de aumentar. Dá pra perceber. Mas ainda tem um contingente considerável de gente sem carro, eu acho. Pelo volume nos ônibus também dá pra perceber. Aí, é só jogar tudo isso nas ruas e avenidas – pequenas e sem estrutura –, somar a educação e a calma dos motoristas mineiros, e pronto! A receita perfeita para um trânsito agradabilíssimo.
Melhor pensar no rango ou olhar para a menina. Faz o tempo passar mais rápido. Tenho certeza que já vi essa porra dessa menina antes. Acho que ela também já percebeu que me conhece, mas também não lembra de onde, ou está com vergonha de conversar. Odeio quando isso acontece – ficar tentando lembrar de alguma coisa aparentemente fácil de lembrar. As lembranças ficam batendo na trave, mas não entram. Nome de filme, então, é chato demais de esquecer. Lasanha, decidido.
Beleza, na Praça Sete desce muita gente. Só agora vai dar para pagar a passagem e passar lá para trás. Sentar ainda nem pensar. Minha mochila. Obrigado, menina-que-eu-conheço-de-algum-lugar. O trocador parece o Tião Macalé, e escuta um forró de arder os ouvidos, felizão. Vai entender. Admiro gente assim. Eu, que já estou indo embora para casa, com essa cara de bunda, e o cara, no meio do expediente, exibindo esse sorriso constante, com os dentes maltratados.
Cochilo em pé. Cena feia pra burro, ainda mais com o ônibus cheio. Tinha um muleque rindo quando os olhos abriram. Ele ficou sem graça, aí quem riu fui eu. Se fosse eu, criança, também ia rir e ainda ia apontar. Minha mãe ficava puta quando eu fazia isso. Opa, a mãe do muleque deu sinal, vou sentar. Agora dá até para cochilar um pouco, sentado, “em paz”. O ritmo com que a cabeça bate, levemente, no vidro do ônibus me adormece. Acordo, de sobressalto, assustado. Quase passo do ponto. Dou sinal e desço.
Hora de suar um pouco, subindo a rua que lembra uma parede de escalada. Dizem que lá em Brasília é tudo plano, nada de subida. Maravilha de lugar. Um camarada com a camisa do Galo vem subindo também, mais no pique que eu. Ele também estava no ônibus, coitado. Ele vai me ultrapassar, está vindo bem mais rápido. Mas, de repente, muda o ritmo.
Ele freia, fica lento como eu, e logo atrás de mim. E anuncia o assalto, falando baixo, pedindo só o celular. Encosto no portão de uma casa. Já até acostumei; é só não reagir, ficar tranqüilo, trocar idéia. Mas vai ficar complicado pagar duas prestações por mês de dois celulares que doei forçadamente a ladrões. Resolvo argumentar. Ao olhar para o cara, porém, tenho a mesma sensação que tive com a menina. A diferença, óbvio, é que nele não tem nada de bonito. Tem a cabeça grande, sobrancelha grossa e cavanhaque, o rosto todo furado pelas marcas de acnes, quase tão feio quanto o Tião Macalé trocador. Ele também percebeu que me conhece, e abaixou a cabeça. Cabeça, cabeça... Cabeção!
– Peraí, você é o Cabeção, que olha carro ali na rua do Breno! – desarmo-o.
– Puta merda, sabia que te conhecia de algum lugar...
A testa franzida e a cara de bandido dão lugar a um rosto ruborizado e arrependido consigo mesmo pela falta de atenção. Ele conhece o Breno há anos, e a família toda dele, não tem nem como continuar: assalto frustrado. Num misto entre raiva e pena, questiono: – Quê isso, cara! Roubando?
– Ta difícil demais, “zé”. A grana ta cada vez mais curta e em casa o bicho ta pegando. Foi mal mesmo, se tivesse lembrado que era amigo do Breno... Como cê chama mesmo? – ele tenta amenizar.
Lúcio, eu respondo. – Tem nada a ver não. Ta ruim pra todo mundo. E o Brenão, tem visto muito?
– Uai, quase todo dia! – ele se anima.
- Fala que eu mandei um abraço.
Ele volta a ruborizar, e nega o pedido, dizendo que não teria coragem de contar o caso ao Breno. Digo que não precisa, para falar que me viu na rua, no Centro. É o nosso segredo.
Ele agradece, constrangido.
– Hoje vai dar Galo, não vai? – agora sou eu quem quebra o gelo.
– Nem me fala! Tomara, né, com esse time do Atlético...
– Ah, mas acho que hoje vai, não é possível! O outro time é ruim demais...
Assim, passamos mais alguns minutos conversando sobre futebol, até que vejo minha vizinha subindo a rua e o assunto muda. Cabeção é peça-rara, tem um jeito de falar engraçado. Mas meu estômago ronca, e me lembro da lasanha. Despeço-me do camarada, só mais um pobre-diabo. Feio, pobre e atleticano. Como eu, como nós. Ele volta às desculpas, com os olhos cheios d’água. Dispenso-as, sorrindo, e lembro-o de falar com o Breno.
– Pode deixar! Não vou esquecer! – ele assegura.
– Beleza, qualquer dia apareço lá na rua. Até!
Chega de papo fiado. A fome está negra e uma bela lasanha me aguarda no freezer. E ainda tem cerveja e jogo do Galo depois. Ai, ai, só em Belo Horizonte mesmo. Só nesse ovo de cidade, onde todo mundo parece estar conectado por um amigo / conhecido / primo / colega de trabalho. Até em situações escabrosas como essa. Pelo jeito, não são apenas as nossas ruas que não se parecem com as de Brasília – nossos ladrões também são bem diferentes.